Samuel Beckett se revela poeta em livro inédito, completo e cuidadoso

“A poesia de Samuel Beckett é um desafio”, afirma Marcos Siscar, poeta e professor da Unicamp, ao apresentar o volume dos poemas completos do autor irlandês, que traduziu em parceria com a pesquisadora Gabriela Vescovi.

A frase, que poderia ser banal caso se referisse apenas ao esforço de tradução, funciona, na verdade, como uma efetiva porta de entrada para o leitor, que se sentirá desafiado de muitas maneiras pela leitura dos textos.

Primeiro, há o lugar ocupado pela poesia no conjunto da produção do autor. Beckett, um dos mais importantes escritores do século 20 e agraciado com o Nobel em 1969, é pouco conhecido como poeta. Tornou-se influente sobretudo por seu teatro do absurdo, como ficaram conhecidas peças como “Esperando Godot”, talvez a sua principal obra, e romances como “Molloy” e “Malone Morre”.

No entanto, escreveu versos ao longo de toda a vida. Publicou seu primeiro poema aos 24 anos e editou alguns conjuntos, mas jamais organizou uma edição mais completa. Não há, assim, uma reunião que possa ser chamada definitiva. Na falta desta, a edição brasileira segue, entre outras opções disponíveis, um volume publicado pela Grove Press em 2012.

A situação editorial faz pensar no valor que o próprio escritor atribuía aos seus versos. Não fosse Beckett a voz por excelência da ideia de que nada na experiência moderna tem valor, seria possível ler na primeira estrofe de um poema como “Cascando” não um recurso retórico, mas um efetivo autoexame: “Por que não meramente desesperar da/ ocasião de verter/ palavras// não é melhor abortar que ser estéril?”.

Nesse contexto, o tradutor defende que a escrita em versos “tem interesse próprio como parte da obra e como modalidade da escrita beckettiana”, tendo “consistência como recorte criativo” e condensando “referências, temas e dispositivos de estilo” que formam a visão da história e da literatura que reconhecemos como a de Beckett.

E, de fato, há um desenvolvimento próprio que a organização do livro procura evidenciar por meio da ordenação cronológica dos conjuntos. Separados em pré-guerra e pós-guerra, os poemas são inicialmente herméticos, valendo-se de uma torrente de referências eruditas para figurar experiências predominantemente pessoais.

É o caso das diferentes composições que, em “Ossos de Eco e Outros Precipitados”, retratam caminhadas por Dublin, no país natal de Beckett, e Paris, onde passou a viver a partir de 1936. Embora recortem elementos das cidades, apontando para a experiência coletiva, as sequências intituladas “Enueg”, “Sânie” e “Serena”, por exemplo, desenvolvem-se em torno de impressões subjetivas.

Já composições tardias abrem-se para dimensões mais amplas mesmo quando o tema diz respeito ao indivíduo. “Rondel”, por exemplo, cujo título remete a um tipo de composição medieval que o leitor brasileiro talvez reconheça como “rondó”, é um poema sobre a solidão. Em uma estrofe única de 13 versos, extrai o máximo de uma quantidade mínima de elementos, que se repetem e ampliam o significado inicial.

 

Fonte: Folha de São Paulo

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